Ao instituir o Auxílio Emergencial pela Lei 13.982, de 02 de abril de 2020, o governo federal precisou com urgência encontrar um meio, ao mesmo tempo seguro e eficaz, de identificar quem faria jus ao benefício. Uma das saídas foi a utilização do cadastro do MEI (microempreendedor individual) junto à Previdência. Como se sabe, o MEI foi criado em 2008 para diminuir a informalidade previdenciária. Os microempresários integraram-se à Previdência atraídos pelo baixíssimo valor de contribuição (5% sobre o valor do salário mínimo). Não por acaso, a categoria reuniu cerca de 10 e 11 milhões de pessoas, respectivamente em 2019 e 2020, segundo as estatísticas da Receita Federal
Embora o subfinanciamento do MEI gere discussões quanto aos seus efeitos atuariais e sofra críticas por exigir complementação de receita onerando outros contribuintes, o fato é que foi este cadastro que garantiu a milhões de famílias o alívio financeiro com o Auxílio Emergencial. Certamente, o benefício não teria chegado a essas famílias sem um critério que permitisse supor quem trabalhava. Sem exagero, quem salvou financeiramente essas 11 milhões de famílias na pandemia foi a política de inclusão previdenciária do MEI, pois o governo não teria pago o auxílio a quem não apresentava sequer indícios de que trabalhava. Por outro lado, é pouquíssimo provável que o volume da categoria chegasse a 11 milhões dentro de um sistema privado, já que o aporte mensal de R$ 55,00, ainda que viável fosse, levaria a uma proteção previdenciária rasteira e pouco atraente. Em consequência, teria sido muito difícil identificar com algum grau de confiança, em curtíssimo prazo, os milhões de microempresários(as) do país. Portanto, parte do sucesso do Auxílio Emergencial só foi possível porque ainda temos uma previdência pública, universal e solidária.
Com o fechamento das agências do INSS a partir de março de 2020, novos desafios foram criados para a gestão dos benefícios previdenciários. Um deles foi o processamento de pedidos de Auxílio-Doença sem a realização de perícia médica presencial. A solução encontrada pela Lei 13.982, de 02 de abril de 2020, em função das circunstâncias excepcionais então em curso, foi a antecipação de um salário mínimo para os requerentes do benefício, durante o período de três meses ou até a realização da perícia. Essa antecipação foi uma medida surpreendente se considerarmos as estatísticas do INSS. Anualmente, são concedidos mais de 2 milhões de Auxílio-Doença. O benefício representa, aproximadamente, 44% do total de prestações concedidas e 46% das despesas (cerca de R$ 7 bilhões somente com benefícios novos a cada ano).
Seria pouco provável que uma instituição financeira privada aceitasse se sujeitar a tal operação. Em condições normais e com inúmeros formulários para preencher, o pagamento de seguros e pecúlios privados pode levar meses. Pergunto: como seria esse mesmo pagamento em condições excepcionais e sem a realização de perícia médica? Teria sido igual em se tratando de recursos vinculados a fundos repletos de compromissos, acionistas e metas? Muito provavelmente não. Os milhares de benefícios de Auxílio-Doença ao longo de 2020, em formato de antecipação baseada na confiança e na responsabilidade social, só foram possíveis, repito, graças à existência de uma previdência pública, universal e solidária.
Um terceiro fato notável dos últimos meses diz respeito à Aposentadoria Especial, que foi cruelmente vilipendiada na reforma previdenciária de 2019. O benefício é pago de forma antecipada a trabalhadores que exercem atividade insalubre, como é o caso dos médicos e enfermeiros que vêm atuando corajosamente no combate à pandemia. É uma aposentadoria diferenciada porque visa compensar tais profissionais pelo maior desgaste da saúde no exercício da profissão. Neste sentido, os dados da pandemia são muito esclarecedores. Até o dia 20 de janeiro de 2021, o Conselho Federal de Enfermagem contabilizava 47.117 enfermeiros(as) infectados(as) pela covid-19 e 525 óbitos. Por sua vez, o Conselho Federal de Medicina informa que até a mesma data, o país já havia perdido 465 médicos(as) pela mesma causa.
De fato, há quem defenda a extinção da Aposentadoria Especial. Argumenta-se que a escolha da profissão é um ato livre do cidadão, e que outras profissões podem ser igualmente penosas conforme a realidade social e econômica de cada um. Dentro de uma perspectiva individualista, argumenta-se também que o benefício depende de financiamento extra, sendo tal ônus distribuído de forma desigual ao restante da sociedade. Mesmo ultrajada, a Aposentadoria Especial resiste. E é bom que se diga que ela é a típica prestação inconcebível em regime de previdência privada, pois neste ambiente qualquer antecipação de benefício pressupõe um ônus financeiro maior ao próprio poupador. Nele, só se recebe o que se acumula, independentemente dos riscos e danos trazidos à saúde pela profissão. Por isso, insisto, os novos heróis nacionais só são recompensados pelos danos sofridos porque a nossa previdência continua predominantemente pública, universal e solidária.
Deixarei de dar outros exemplos por falta de espaço, mas todos eles convergem para um princípio fundamental: em matéria de proteção social não há muito espaço para individualismos e privatismos. Por isso, em que pese estarmos todos ansiosos pela vacina de combate à covid-19, estamos carecendo no momento de outra “vacina” igualmente importante para a preservação do nosso bem-estar: a autocrítica. É inegável a importância da previdência privada, desde que funcione como complemento de uma previdência básica digna. O desdém de milhões de brasileiros à previdência pública, sem uma reflexão mais profunda durante a reforma feita em 2019, encontra agora um contraponto nos fatos recentes. Eles nos ensinaram a importância de termos uma previdência pública, forte e integradora. Fico na torcida para que esta “vacina” todos tomem.
Vinícius Pacheco Fluminhan é Advogado e professor do Curso de Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas.