Depressão e obesidade: a via de mão dupla que afeta milhões de brasileiros

De Rafael

O programa Quilos Mortais, versão brasileira, estreou no início do mês de maio e mostra a luta de pacientes com os problemas gerados pelo ganho excessivo de peso.

O programa Quilos Mortais, versão brasileira, estreou no início do mês de maio e mostra a luta de pacientes com os problemas gerados pelo ganho excessivo de peso.

Há quem defenda o senso comum: de que a pessoa depressiva engorda porque come para compensar a tristeza. E a pessoa com sobrepeso entra em depressão porque não está satisfeita com o próprio corpo. Mas a relação entre obesidade e depressão não se explica assim de forma tão simples. Estudos científicos comprovaram que a relação entre cérebro e estômago é bem mais complexa e necessita de intervenção multidisciplinar urgente.

Embora seja difícil de imaginar, o tecido adiposo do corpo “conversa” com o cérebro mais frequentemente do que se imagina. Conforme explica o cirurgião e presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), Antônio Carlos Valezi, é nas células adiposas que o corpo produz a leptina, hormônio responsável por regular a saciedade e o metabolismo, dizendo ao cérebro que “já chega de comer, estou satisfeito”. Porém o consumo excessivo de alimentos gordurosos, com muito açúcar e industrializados levam à inflamação de células no corpo e no cérebro.

“Pessoas obesas passam a ter elevados níveis de proteína C-reativa (PCR), gerada quando há inflamação no corpo, e níveis anormais de leptina. A inflamação passa a ser crônica e o cérebro começa a não interpretar o excesso de leptina. Então o cérebro emite a informação de que a pessoa deve comer mais e que nunca está satisfeita”, explica Valezi.

Conforme dados do Sivan, aproximadamente 33,48% da população brasileira (27,6 milhões de pessoas) estava obesa no ano de 2023. A obesidade é dividida em três níveis: graus II, II e III. E segundo o Ministério da Saúde, a prevalência de depressão ao longo da vida no Brasil está em torno de 15,5%.

Depressão

Quando o corpo tem alguma inflamação ou infecção, o sistema imunológico é ativado para combater este quadro. Com o sistema imunológico em funcionamento, são comuns as sensações de cansaço, letargia e falta de motivação, que também afetam pessoas com depressão. No caso da pessoa obesa, essa defesa imunológica ocorre o tempo todo, levando constantemente ao cérebro a informação de falta de motivação, o que vai gerando e agravando a depressão.

Com isso, o estudo da Psychiatric GWAS Consortium, chamado Genetic Association of Major Depression With Atypical Features and Obesity-Related Immunometabolic Dysregulations, apontou que em 80% dos casos a obesidade é um fator envolvido no surgimento de sintomas depressivos. Por outro lado, 53% das mais de 26 mil pessoas analisadas no estudo demonstraram que a depressão também está associada ao ganho de peso e à obesidade, pois gatilhos emocionais levam à vontade de comer como forma de compensação. “Ou seja, depressão e obesidade são doenças que caminham juntas, numa via de mão dupla”, afirma o presidente da SBCBM.

Quem também explica essa relação entre obesidade e depressão é o psiquiatra Alexandre Laux, especialista em cirurgia bariátrica e membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica. Ele diz que os pacientes obesos têm maior propensão aos transtornos psiquiátricos e o mais comum deles é a depressão. “E um dos sintomas do quadro depressivo é a alteração do padrão alimentar”, conta Laux. Além de comer mais, esse paciente também tem o que a psiquiatria chama de “desativação comportamental”.

Com menos energia, explica Alexandre, o paciente tende a ficar mais parado e evitar a atividade física (sejam as programadas, como caminhada ou ida à academia, quanto as não programadas, como ir buscar algo na loja próxima a pé). Ele também come mais comida e gasta menos energia.

“Um outro critério diagnóstico de depressão é a alteração do sono. Geralmente o paciente com depressão tem insônia, que além de gerar indisposição para o dia, pode alterar a secreção de alguns hormônios. A leptina, por exemplo, que é um hormônio que dá saciedade, é secretada numa quantidade menor. Já a grelina, que é um hormônio que dá fome, é secretada em uma quantidade maior. Então esse paciente, além de dormir e se exercitar menos, também tem mais fome do que o habitual. E essas combinações fazem com que a pessoa ganhe cada vez mais peso”, explica o psiquiatra.

Quilos mortais

O programa Quilos Mortais, versão brasileira, estreou no início do mês de maio e mostra a luta de pacientes brasileiros com os problemas gerados pelo ganho excessivo de peso. Os dois primeiros episódios mostram a história de Carlos, que excedeu a marca dos 300 quilos e passou a ter problemas para se locomover e até respirar, e a luta de Andrea, que precisava da ajuda do marido até para lavar e pentear o cabelo.

Mas é preciso ressaltar que o reality show mostra pessoas em condições extremas. Ou seja, dentro dos 33,48% dos brasileiros considerados obesos, apenas 4,41% possuem obesidade mórbida (1.058.646 de pessoas), público mostrado no Quilos Mortais. São pessoas com obesidade grau III (com índice de massa corporal – IMC – acima de 40 Kg/m2).

A SBCBM alerta que ninguém deve esperar chegar a este grau de obesidade para buscar ajuda médica e a cirurgia bariátrica. A intervenção pode e deve ser feita em qualquer pessoa obesa grau II ou III, acima dos 16 anos e que tenha alguma comorbidade, como por exemplo, diabetes tipo II, problemas ortopédicos por causa do peso, etc. As diretrizes legais para ter direito à cirurgia estão regulamentadas nas portarias n° 424 e 425 do Ministério da Saúde.

Cenário Nacional

Não é possível saber o tamanho da fila de pessoas aguardando a cirurgia bariátrica no Brasil, pois os dados do SUS são descentralizados para os estados e municípios. O que se sabe é que 12,72% da população brasileira (27,6 milhões de pessoas com obesidade grau II e III) possuem indicação para a intervenção.

Ainda conforme levantamento da SBCBM, via Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS) no ano de 2023 foram realizadas 7.511 cirurgias bariátricas pelo SUS e em 2022 foram realizados 5.923 procedimentos. Já pelos planos de saúde, os últimos dados são de 2022, quando foram realizadas 65.256 por planos de saúde. A soma no ano representa apenas 0,2% do total de brasileiros elegíveis para uma cirurgia bariátrica e que conseguiram realizar o procedimento.

“Nesse ritmo, a fila de pacientes aguardando a cirurgia nunca vai zerar. Até porque a obesidade é considerada epidêmica em todo o mundo e sua incidência aumenta ano a an”, reforça o presidente Valezi.

Apesar da SBCBM ter realizado um mutirão de cirurgias bariátricas no início de março, em todo o Brasil, com 92 pacientes operados, a Sociedade pede ao poder público que o acesso ao tratamento seja ampliado urgentemente no país, reduzindo os efeitos e doenças associadas à obesidade que impactam o sistema público e reduzem a qualidade de vida da população.

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