Saúde Mental no Brasil: ações desencontradas dificultam a implementação de políticas públicas consistentes

*Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

As discussões sobre saúde mental estão se tornando cada vez mais presentes e necessárias, especialmente no contexto da pandemia da Covid-19. A premissa de que “não há saúde sem saúde mental”, que há mais de 10 anos simbolizou o alerta global para a necessidade de ações em relação às consequências causadas pelos transtornos mentais, tem um significado ainda mais particular nas primeiras décadas de vida – fase do desenvolvimento em que se manifestam pela primeira vez diversos desses problemas.

O desencadeamento de transtornos mentais em idades precoces tem associação com diversos fatores, como uso problemático de substâncias, incapacidade de viver de maneira independente, problemas com a justiça, evasão escolar, limitações econômicas,  problemas de saúde física e o suicídio. Por esse motivo, problemas de saúde mental não podem ser dissociados de outros problemas de saúde e de outras agendas sociais, como a educação e a empregabilidade.

No geral, é muito comum que o assunto seja abordado ao se pensar exclusivamente nas dificuldades que as pessoas têm para lidar com suas emoções e sentimentos, proveniente também da falta de conhecimento mais aprofundado sobre suas particularidades, comprometendo as atividades da vida cotidiana por um período prolongado. Mas a discussão vai muito além disso. Sem a atenção, o cuidado e a informação sobre o tema da saúde mental, assim como políticas públicas intersetoriais consistentes, os impactos podem se estender tanto para o indivíduo em fases da vida adulta, quanto para famílias, comunidades, sistemas de saúde, educacional, de assistência e até mesmo o desenvolvimento econômico de um país. Abordar estes assuntos implica em compreender melhor os desdobramentos psicológicos desde a infância e adolescência, além de outros atores responsáveis, como pais, escolas, religiões, entre outros.

Nesse sentido, é de extrema importância que façamos algumas reflexões sobre as impermanências do campo da saúde mental, a começar pela realidade brasileira. No final da década de 70, o Brasil se tornou uma referência internacional ao realizar a Reforma Psiquiátrica – que implicou em mudanças devido às denúncias de abuso e transgressões nos hospitais psiquiátricos. Este processo se intensificou em 2001, através da promulgação efetiva de garantias legais e do redirecionamento de recursos hospitalares para assistência básica de saúde mental.

O que mudou com essas novas diretrizes? 

Com a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216 de 2001), os recursos financeiros anteriormente destinados quase exclusivamente à assistência essencialmente hospitalar foram redirecionados, o que permitiu uma expansão da rede de serviços comunitários, com aumento da oferta de cuidados em saúde mental.

Também foram passos muito importantes nesse aspecto a criação das chamadas RAPS – Rede de Atenção Psicossocial – do Sistema Único de Saúde (SUS), que oferecem serviços e ações integradas para pessoas com sofrimento mental ou problemas decorrentes do uso de substâncias, juntamente aos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) – uma das principais referências de acolhimento para os usuários de saúde mental.

No entanto, o levantamento “Caminhos em Saúde Mental” que realizamos ao longo de 2020, revelou uma mudança de prioridades. Desde o final de 2015 e início de 2016 começaram inconsistências nesta abordagem comunitária que avançava de forma tão promissora, principalmente em 2017, quando novas portarias do Ministério da Saúde criaram Unidades Ambulatoriais Especializadas. Em oposição às abordagens de reinserção social, essas portarias permitiram serviços de internação para crianças e adolescentes, além de incluírem o hospital psiquiátrico como ponto de atenção da RAPS, a diminuição do orçamento destinado ao tema, entre outras questões.

Dificuldade de implementar políticas de atuação ainda é um problema

Apesar dos avanços, o Brasil ainda peca em vários aspectos. Em um cenário onde as políticas públicas de saúde mental não são implementadas de forma regular, é difícil observar reais progressos. As medidas atuais focam muito mais naqueles que possuem sinais graves, negligenciando a promoção e prevenção da saúde e o acolhimento das primeiras manifestações de sofrimento.

São muitos os desafios no campo da saúde mental e algumas prioridades – que parecem mais salientes em termos de oportunidades para promoção de saúde e prevenção de consequências negativas – precisam ser vistas com maior clareza e atenção pelo governo, academia, sociedade civil e outros setores sociais. Entre elas, a integração dos cuidados de saúde mental às estratégias de saúde geral, utilizando, por exemplo, campanhas de atenção pré-natal, de vacinação e de saúde nas escolas.

As dicotomias do passado – que frequentemente impediram a implementação de uma política de saúde mental, ao mesmo tempo científica e humana – certamente precisam ser lembradas para que os equívocos não se repitam ou até mesmo piorem na realidade de pós-pandemia. Nessa encruzilhada, a promoção e a proteção da saúde mental devem estar em primeiro plano, sendo imprescindível a avaliação contínua das políticas implementadas, de modo a adaptar a oferta às demandas do momento e do contexto. Por isso, é imprescindível refletir na narrativa da saúde mental a mesma centralidade que ela já ocupa na nossa sociedade, nos nossos lares, corporações e vidas pessoais. Precisamos falar abertamente sobre isso, e de forma mais articulada e menos polarizada.

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*Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus;

**Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e gerente executiva do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando informações  e cuidados com a Saúde Mental.

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